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sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Quem sou eu - um conto de Denis Cruz

Quem sou eu? Para responder a essa pergunta tão simples eu teria que contar, primeiro, quem eu fui e, só então, poderei dizer quem sou. Tenho boas memórias sobre minha infância. Tive bons pais, estudei em boas escolas, usei roupas da melhor qualidade e sempre aproveitei bem a vida. Lembro-me das baladas com os amigos. Altas festas. Era bom demais.

Meu primeiro porre foi aos quatorze anos. Uma comédia. Foi numa festa de quinze anos de uma amiga da escola. Eu bebi tanto que vomitei na vasilha do ponche. Até hoje meus amigos contam essa história. Foram eles que me deram banho, café amargo e me levaram pra casa. Meus pais nem desconfiaram.

Não me lembro do que aconteceu exatamente, só sei o que o pessoal me contou. Eu nunca havia bebido nada e acho que gostei do sabor do ponche.

Depois daquele dia, comecei a sair mais com os amigos e sempre alguém dava um jeito de levar uma bebida. Cerveja, uísque, vodka, sempre havia alguma coisa pra animar a festa.

Eu obedecia meus pais e resistia às insistências dos meus amigos. Mas não é fácil ser alvo dos sarros de amigos e, após muita insistência, eu sempre dava a primeira "bicada" numa cervejinha. Era a última coisa que eu via, o resto da história só ficava sabendo pelos comentários dos amigos na escola, no outro dia.

Era sempre aquela comédia: ou eu tinha dançado com a avó da aniversariante, urinado no vaso de flor, ou vomitado no tapete da sala, beijado o cachorro na boca, ou coisas que nem me contavam, só riam em um coro interminável. De toda forma, eu amava isso, pois sempre era o centro de todas as atenções.

Assim vivi até uns 18 ou 19 anos, sempre só na cervejinha, pois ela era mais fácil de "controlar".

Na minha festa de formatura de segundo grau, resolvi dar-me um presente: eu iria experimentar um bom uísque. Um amigo comprou um dos melhores, serviu meu copo: uma dose completa, com um cubo de gelo dentro. Degustei em um grande gole. Foi como colocar uma gota de sangue na língua de um tubarão. Se eu fechar os olhos posso sentir o sabor e o cheiro daquele gole. Depois disso eu não me lembro de mais nada. Acho que há coisas que nossa memória faz questão de esquecer.

Eu achava que gostava de cerveja, mas posso afirmar: para mim, bebida fermentada não é nada; a destilada é tudo.

Minha vida era simples: de dia ajudava meu pai na loja e de noite, festa e mais festa. Meus pais não entendiam muito bem o que estava acontecendo, pois sempre julgaram ser algo da juventude e que logo eu teria maturidade suficiente pra abandonar toda aquela baderna.

Recordo-me, também, de quando minha filha nasceu. Eu tinha uns 22 anos, minha namorada havia engravidado, nós assumimos. Bem, pra dizer a verdade, nossos pais nos assumiram, pois nenhum de nós tinha independência financeira e precisamos ir morar na casa do meu pai.

No dia em que a pequena Milena ia nascer, fiz questão de não beber nada, pois queria estar cem por cento presente em cada momento do que ia acontecer.

No hospital, enquanto esperava pelo parto, eu tremia e suava frio. Minha boca estava seca. Sentia uma sede terrível. Era muita emoção. Precisei sair pra tomar um ar e só retornei duas horas depois, após ter quase esvaziado uma garrafa de vodka na conveniência perto do hospital.

Lembro-me de que as enfermeiras não queriam que eu entrasse, mas consegui me livrar delas e sair correndo pelo corredor do hospital gritando: "Milena, Milena, você nasceu minha filha?" Parei em frente ao quarto onde minha esposa estava, mas alguém trancou a porta por dentro. Eu só queria ver a Milena. De joelhos, eu esmurrava a porta, chorava e gritava o nome da minha pequena. Que gostoso, eu podia ouvir o chorinho dela vindo de dentro do quarto. Eu só queria ter sido o primeiro a pegá-la no colo e ver aquele rostinho de anjo...

Milena... eu sinto saudades dela. Meu casamento durou pouco. Uns três anos, talvez. Minha esposa não aceitava meu apreço pela bebida. Mas tudo bem, separações fazem parte da vida.

Eu podia ver minha filha aos fins de semana, conforme combinamos, mas depois perdi esse direito, pois num domingo bati o carro com a Milena dentro. Ela quase morreu. O Juiz do caso acreditou na versão de que eu estava dirigindo bêbado.

Mas eu ainda podia ver a Milena no apartamento da minha ex-esposa. Porém, também perdi esse privilégio num dia que apareci lá no meio da semana, vindo de uma festa. Eu arrombei a porta e joguei minha filha nos ombros dizendo que a levaria pra junto de mim para sempre. Ela chorava, mas eu dizia pra não se preocupar, pois eu a protegeria.

Minha ex tentou tirá-la dos meus ombros, mas bati nela. Depois disso, perdi o direito de me aproximar da minha filha. Tenho que manter uma distância de trezentos metros dela.

Milena... sinto saudades... Faz três anos que não posso olhar nos olhos da minha filha.

Eu destruí parte do patrimônio da minha família. Eles gastaram muito comigo, na maioria das vezes pra me tirar da cadeia por causa de uma série de infrações.

Meu pai e minha mãe ficaram ao meu lado até não terem mais forças pra me suportar. Eu matei até mesmo as esperanças deles.

Na minha vida eu já fumei, eu já cheirei, mas no meu sangue nada tem mais efeito do que o álcool. É como se eu tivesse uma sensibilidade pra ele.

Alguns aprendem a amar o álcool. Eu acho que já nasci com esse amor em meu sangue. Com o álcool eu chego ao meu oitavo céu, mas, quando eu acordo, me vejo no oitavo círculo do inferno.

Às vezes, acordo em uma poça de lama, ou no canto da calçada, todo sujo e fedido. Já acordei em uma delegacia, em hospitais ou rodeado de um bando de drogados.

Há duas horas, eu ia me matar, mas a campainha tocou antes que eu puxasse o gatilho. Era meu amigo Mauro. Ele me pegou pelo braço e me trouxe aqui. Falou-me de Deus e disse que poderia ser minha última chance de viver decentemente.

Quem sou eu? Acho que agora posso responder: eu me chamo Lúcio Dias Júnior, tenho 32 anos de idade, estou agora sentado em uma cadeira de reuniões dos Alcoólatras Anônimos e, pela primeira vez na minha vida, reconheço que sou alcoólatra.

Um comentário:

Danivia disse...

Excelente, Denis... gostei demais.

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